"O kirchnerismo vai além das figuras de Néstor e Cristina"
As eleições de 25 de outubro são o fim do kirchnerismo ou o início de um kirchnerismo diferente?
É uma pergunta difícil. Se pensarmos no kirchnerismo personalizado em Néstor e Cristina Kirchner, sim. Mas o kirchnerismo já vai para lá das figuras de Néstor e Cristina. Construiu um novo movimento político dentro do peronismo com uma nova geração de militantes. O kirchnerismo é uma mistura de Néstor Kirchner, da sua nova forma de fazer política e do confronto com organismos internacionais, mas também a sua relação com Hugo Chávez, com Lula da Silva, com Evo Morales. A morte de Néstor contribuiu para o desenvolvimento deste movimento, tomando por base o peronismo histórico de Péron e Evita, mas dando importância às figuras que são Néstor e Cristina. O peronismo sempre foi difícil de compreender não só para os europeus mas até para os argentinos. Porque junta muitas correntes políticas. Comparo-o ao Labour britânico, que teve figuras como Tony Blair ou Gordon Brown e agora tem um líder como Jeremy Corbyn. No peronismo também sempre houve isto: pessoas muito de esquerda e pessoas muito de direita. Nunca saíram, outros saíram e voltaram mais tarde. A diferença é que esta nova geração tem um imaginário coletivo da América Latina, mas também de organismos regionais como a Unasur, que teve como primeiro secretário-geral Néstor Kirchner, e intervém em conflitos regionais em que antes intervinha a OEA (Organização dos Estados Americanos), dominada pelos EUA. É preciso esperar pelo resultado das eleições. Daniel Scioli não é visto como um continuador linear de Néstor e Cristina e o seu governo é uma grande incógnita.
O que se pode esperar de Scioli?
Por ter chegado à política pela mão de Carlos Menem e se ter adaptado a diferentes momentos políticos, alguns setores do kirchnerismo não veem Daniel Scioli como a continuidade de Néstor e Cristina. Também é verdade que a Argentina mudou muito. Não é a Argentina da década de 90. E Scioli fez parte destas mudanças. Temos de esperar que forme governo e tome as primeiras medidas políticas e económicas.
Qual o rumo da Argentina nos próximos anos?
Não podemos olhar para a política argentina sem olhar para a região. Há um dado muito interessante: desde que Chávez ganhou as eleições na Venezuela em 1998, nenhum governo progressista - no amplo sentido: progressista, popular, populista - na América Latina perdeu as eleições. Estes governos, com as suas particularidades, ganharam porque têm apoio popular.
A Argentina em 2001, agora o Brasil, os países emergentes da América Latina estão condenados ao fracasso?
Acho que nenhum país está condenado a nada, depende das políticas económicas que aplique e de como olhamos. Se pensarmos nos milhões de pobres que saíram da pobreza graças aos planos de Lula, alguns diriam que o Brasil está condenado ao êxito. Mas para os organismos internacionais o tema da pobreza é irrelevante. Se compararmos a Argentina de hoje com a de 2001, houve um grande crescimento económico e social. Na altura, quem chegava a Buenos Aires encontrava uma grave crise social e um panorama semelhante ao que se vive na Grécia nos últimos anos: lojas fechadas, cartazes a dizer "Arrenda--se". Hoje não é assim.
Isso explica porque Cristina Kirchner tem uma popularidade de 50% quando Dilma anda nos 9%?
Acima de 50%. Mas são casos diferentes. No Brasil há uma campanha forte para destituir Dilma desde que ela tomou posse. Com apoio dos media. Por isso acho que as sondagens que dão Dilma com popularidade de 9% são manipulações políticas que tentam minar a credibilidade da presidente e exigir a sua destituição. O caso da Argentina é diferente, graças à estabilidade que conseguiram os governos de Néstor e Cristina Kirchner. Não há uma situação de crise económica como no Brasil. Além disso, a Argentina é um país com uma classe média muito forte e muito maior do que a brasileira. Também é verdade que os principais media na região se opõem a estes governos e se converteram em verdadeiros partidos políticos devido à fraqueza destes.
Na Argentina há essa tradição de politização dos media?
Na Argentina, os media foram criados para a atividade política. E muitos, inclusive o histórico jornal La Nación, têm forte postura antiperonista. Além disso, estes governos progressistas na América Latina tocam nos interesses económicos dos meios de comunicação. Os media mudaram, já não se dedicam apenas às notícias. O Clarín não é só um jornal, tem televisões, rádios e empresas que nada têm que ver com a informação. O Clarín na Argentina tinha todos os direitos do futebol e nenhum outro media podia mostrar imagens dos jogos enquanto não passassem na TV do Clarín no domingo à noite. O governo interveio e agora qualquer canal pode mostrar tudo. Mas tirou um grande negócio ao Clarín, tornando-o no inimigo do governo.
Como argentino, como vê as mudanças que o Papa Francisco tem introduzido na Igreja?
Não o vejo como argentino, vejo-o como jornalista. No momento em que o elegeram disse logo: o Papa Francisco não é o cardeal Bergoglio. Não me enganei. Francisco já mostrou ter uma visão ideológica do mundo que não parecia ter como cardeal. Também com características pessoais muito próprias: o contacto com as pessoas. Isto explica-se porque cresceu em Buenos Aires e é muito peronista.
Já era assim em Buenos Aires?
Sim, andava de metro, tinha contacto direto com as pessoas. O que acontece é que a sua visibilidade era mínima para o mundo religioso e político. Ao tornar-se Papa, em contraponto com as atitudes dos papas anteriores, quando fala com as multidões em Roma, imediatamente gera surpresa. É um estilo dele. E crescer num mundo peronista teve influência. Para entender Francisco é preciso entender o peronismo.
Como professor de Sociologia do Médio Oriente, como vê a crise dos refugiados na Europa, com milhares a tentar fugir da guerra na Síria?
Não a vejo como um problema do Médio Oriente. É um problema europeu. E aqui sou subjetivo. Sou filho de imigrantes. Os meus pais fugiram da Alemanha nazi. O meu pai tinha 18 anos e a minha mãe 13. Sei o que é ser filho de imigrante. E parece-me uma vergonha o que a Europa está a fazer. Não tem que ver com o Médio Oriente, porque a maioria dos que fogem da guerra na Síria estão no Líbano ou na Jordânia, não estão na Croácia ou na Hungria. O que se passa com Schengen, com as fronteiras, com o outro? Esta Europa não é a de fins do século XIX, quando colonizava o mundo. Depois da descolonização em África e na Ásia, mudou. Muitos voltaram à metrópole. Portugal é exemplo. Os franceses não eram negros antes de colonizar África, nem havia árabes antes de colonizar o Médio Oriente. O problema é que estas sociedades europeias mudaram. Mesmo que não usem a terminologia nazi da pureza racial, quando numa campanha eleitoral, há anos em França, alertavam para o perigo do canalizador polaco, já havia uma distância entre o francês e o polaco.
A solução para esta crise não é portanto acabar com a guerra na Síria?
O problema é a Europa. Com os europeus que se consideram puros, franceses puros, húngaros puros ou gregos puros, e não conseguem aceitar o outro.